quinta-feira, 2 de agosto de 2007

30 de janeiro

Acordou.
Onde eu tô? Sempre que eu durmo na minha vó acordo sem saber onde estou.
Mas eu não tenho mais 5 anos. Onde eu tô? Tá quente. Maior sol.
Tava indo pra São Paulo, amanhã é meu aniversário. 21 anos. Ontem fui na pizzaria.
Saímos 13:10 hs. Onde eu tô?
- A moça acordou.
- Onde eu tô?
- Você sofreu um acidente, moça. Lembra um telefone pra gente avisar?
- 9357-2367
Olhou pro lado, o namorado ensanguentado. Piscou e o tempo passou. Acordou, a mão ensanguentada. Cheia de cacos de vidro. Calor. Era verão e verão no interior é quente de verdade. Do lado ele gemia e uma coisa parecida com ronco.
- E minha sogra, ela também tá...
- Já chamamos o resgate, moça. Devem estar chegando. Fica calma, viu?
Piscou e o resgate chegou. Piscou e abriram a porta. Piscou.
- Vamos tirar ele primeiro.
- Ele tá bem?
- Fica calma moça.
Todo mundo mandava ficar calma e ela estava calma mesmo. Chorava lágrimas quentes e calmas. Suava com aquele calor. Ele gemendo e roncando.
- Agora vamos tirar você, você vai sentir um pouco de dor. Fica calma.
Piscou e estava dentro da ambulância, sabia pela sirene.
- Batimento 180, abre o soro.
- Tá muito alto, né?
- Fica calma que estamos cuidando de você.
- E ele?
- Não se preocupa. Parece que está tudo bem.
- E minha sogra?
- Ela foi em outra ambulância.
- Ela tá bem?
- Não sei.
Piscava e girava. Vou morrer na ambulância, manda ir mais devagar. Eu vou cair. Piscava e girava. Me segura que eu vou cair.
- Eu vou cair.
- Calma moça.
Piscou e estava no hospital. Muita gente de branco correndo com ela.
- Dói aqui?
- Não.
- E aqui?
- Não.
- Tá doendo minhas costas.
- É sua bolsa e seu sapato que estão aqui, guarda pra ela. Leva pro raio x. Depois a gente tira o colete, tá?
Piscava e girava. Piscava e doía. Piscava e esquecia. Piscava e o corredor não acabava.
- E o meu namorado?
- Ele está sendo atendido também.
Piscava e raio x. Piscava e rodava. Rodava e doía.
- Parece que tá tudo bem. Vamos tirar o colete e você vai fazer mais um raio x, tá? Acho que quebrou uma costela, mas vamos conferir sem o colete.
Tiraram o colete e cortaram a calça preferida, a blusa que ganhou de presente, o único sutiã branco. Chorou.
- Adoro essa calça.
- Fica calma moça.
- Você é enfermeira? Quantos anos você tem?
- 21.
- Eu vou fazer 21 amanhã.
Chorava de gratidão agora. De alegria e gratidão. Ia fazer aniversário amanhã. A enfermeira chorava. 21 anos. Olhou pro lado e ele estava ali, olhos fechados e cheio de sangue. Chorou.
- Fica calma, ele está bem. Só bateu a cabeça, mas tá tudo bem.
- E minha sogra?
- Não sei, só chegaram vocês dois. Ela pode estar em outro hospital.
Levaram ele embora e ela não conseguia perguntar pra onde. Injeção, curativo e mais soro.
- Esse é o paramédico que te resgatou, ficou pra ver como você estava.
- Eu tô bem. Obrigada.
- Você nasceu de novo.
- Amanhã é meu aniversário.
O paramédico chorava. Ela sorria e chorava. Precisava avisar alguém.
- Tem um celular tocando. É dela.
- Alô. Mais ou menos. Batemos o carro. Tá tudo bem, estamos no hospital. Ele tá fazendo uns exames. Ela não veio pra cá, tenta descobrir onde ela está. Eu tô bem, sim. Liga daqui a pouco, chegou um policial pra falar comigo.
- Você lembra o que aconteceu Flávia?
- Não.
- Pra onde vocês iam?
- Pra São Paulo.
- Você lembra da batida?
- Não. Como foi?
- Outro carro bateu em vocês.
- Lembra o número do seu RG?
- 297434464.
- É só isso, pode descansar.
- Você sabe da minha sogra? Ela tava no carro com a gente.
- Infelizmente...

Ela não escutava mais.

... ela faleceu, Flávia.

Não entendia mais.

... Eu sinto muito.

Ela piscou e recomeçou a girar. O celular tocava. Nada estava no mesmo lugar.
O foco estava aceso e ela não sabia o que dizer, não conhecia o texto, não tinha ensaiado. Essa porra de pesadelo de novo? Não podia atender o celular, nem abandonar o palco. O foco estava aceso e estava sozinha. Piscou querendo acordar. Tudo tinha mudado de lugar. O celular não ia parar. Não tinha texto. O foco. Ela.
- Alô.