terça-feira, 19 de janeiro de 2010

gato por lebre

Saiu de casa com o roteiro definido: locadora, supermercado e banco. Era um início de tarde tranquilo, sem grandes compromissos ou possibilidade de estresse, afinal era tudo pertinho de casa.
Passou na locadora onde queriam cobrar o valor de lançamento sobre o filme que tinha alugado. O que lhe pareceu problema foi o fato de o filme ter sido realizado há uns quinze anos, inclusive ele já tinha assistido o filme em vhs. Ele tentou argumentar com o atendente – olha, eu não sabia que esse filme era lançamento, afinal o filme é velho. O rapaz estava preparado – mas esse filme é lançamento em dvd. Ele não entendia qual a lógica – amigo, que eu tenho a ver com o fato de você ter comprado o filme só agora? se lançaram em dvd ou blue ray ou a putaqueopariu? você devia pelo menos ter me avisado que se tratava de um “lançamento” - fez as aspas com as mãos apesar de odiar esse gesto. O rapaz da locadora continuava – mas o senhor não viu a etiqueta laranja? etiqueta laranja é lançamento. Ele olhou para a etiqueta laranja, uma bolinha laranja na verdade, colada na capa igualmente laranja do filme – ô meu filho, isso é piada? etiqueta laranja? pra começar onde está a legenda das etiquetas? - olhava ao redor e nas paredes e não havia legendas – sou obrigado a adivinhar o significado das bolinhas coloridas? O rapaz parecia determinado a irritá-lo, repetia as mesmas frases e parecia acreditar que assim explicava o mal-entendido. Saiu da locadora com uma certeza, cada dia mais vendia-se gato por lebre. Lançamento? Quando assistiu o filme pela primeira vez tinha uns quinze anos. Que idéia genial essa de transformar um filme antigo em lançamento, praticamente sem custo nenhum. Incrível que só ele pensasse assim.
A próxima parada, no supermercado parecia fácil, era só comprar ovos, tomates, alface e queijo. Foi direto às prateleiras certas, não gostava de ficar zanzando no mercado. Ele olhou para os tomates com desânimo, pareciam bonitos de longe, mas de perto dava pra perceber que a maioria tinha um pedaço podre ou um amassado e o cheiro nem de longe lembrava tomate de verdade. Escolheu como pôde e conseguiu selecionar quatro tomates. A alface estava toda amassada também, algumas folhas mais machucadas estavam pretas. Pegou um pé de alface que parecia quase intacto. Queijo fatiado e ovo pelo menos não tinha que escolher. Olhou as bandejas de ovos e lembrou-se que tinha tamanhos diferentes de ovos, médio, grande e extra. Escolheu o grande e foi em direção ao caixa. Nota paulista?
Foi ao banco pagar uma conta de luz, o caixa eletrônico prometia ser mais rápido que a fila dentro da agência. Enfiou o cartão e foi escolhendo: pagamentos – com códigos de barras – posicione o código para leitura – uma, duas, três vezes... nada. Mudou de caixa, evidentemente aquele estava com problema na leitura. Tentou novamente, o mesmo: uma, duas, três vezes e nada. O caixa eletrônico já não parecia tão atraente, a fila da agência talvez fosse uma opção. Mas não podia se conformar, a porra do caixa eletrônico não estava ali pra facilitar? e afinal ele pagava taxas além da mensalidade da conta que deveriam garantir algum conforto. Entrou intempestivo na agência a procura de alguém com quem pudesse reclamar, o gerente, por exemplo. Logo uma mocinha o alcançou – pois não senhor, posso ajudá-lo? Eu só quero pagar uma conta de luz. No caixa eletrônico?. Sim. Eu vou ajudar o senhor. Eu não preciso de ajuda, só quero que essa merda de caixa funcione. O senhor tentou aquele ali? Não querida, ainda não tentei todos. Ele tentou no caixa indicado que devia ser o único que funcionava direito e conseguiu finalmente pagar sua conta.
No caminho para casa pensava se era só ele que se incomodava com essas mentiras contemporâneas. Caixa eletrônico, pagamento com código de barras que não funcionava. Filmes velhos que de repente voltam a ser lançamentos. Lixo a venda no supermercado nas prateleiras de verduras. Como se acalmar? Como se acalmar e pagar? Porque a cobrança vinha sempre, no caixa, pelo correio, na maquininha do visa.
Entrou em casa, feliz por estar de certa forma salvo. Foi guardar as compras na geladeira. Os ovos grandes não eram tão grandes assim quando se abria a caixinha, pareciam mais ovos de garnisé. O engano continuava.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

dia primeiro

- Nunca vamos poder casar na igreja.
Ela estranhou um pouco a fala, mas nem tanto, já tinha ouvido piores.
- Porquê?
- Não temos nenhuma religião, nem acreditamos em deus. Não faz sentido a gente casar na igreja.
- É verdade. Tava pensando em casamento?
- Tava pensando em várias coisas, deus e tal... e percebi que não podemos casar na igreja.
Os fogos ainda explodiam e ela pensava em quantas vezes já tinha dito o que pensava sobre cerimônias de casamento. Achava um absurdo assinar qualquer tipo de documento, fazer qualquer tipo de juramento diante de juiz ou padre, convocar testemunhas, etc. Achava que o casamento só era possível como combinado entre os dois. Há alguns meses ela havia explicado tudo que pensava sobre o assunto. Tinha certeza de que havia falado tudo. Porque ele não ouviu? Talvez pensasse que era desculpa para evitar um compromisso maior. Maior? Como poderia se comprometer ainda mais? Achava que ele tinha começado com a história de casamento oficial para disfarçar todas as cagadas que tinham acontecido no casamento real deles. Como se até o momento tudo tivesse sido brincadeirinha. Mais uma razão pra ela não cair nessa cilada de casamento com padre e juiz. Não ia admitir essa saída. Lá estava ela no primeiro dia do ano pensando nas mesmas coisas...
- Você viu que essa árvore parece um gato?
Ele concordou, mas achava mais parecida com uma coruja.