terça-feira, 21 de outubro de 2014

essa coisa de cheiro

outro dia alguém me disse que tinha sentido meu cheiro e tava lá pensando em mim. não sei se o meu cheiro vinha de outra pessoa ou de onde. tenho essa tendência de achar que o cheiro está em algum lugar. que o cheiro pode contar onde estou e dar um sentido pra qualquer coisa que esteja acontecendo. que o cheiro é um lugar.

no ônibus, vitimada por um soltador de puns em série, comecei a pensar na nossa capacidade de sentir cheiro. qual teria sido a razão do criador ter botado um acessório na nossa fabricação que nos permite distinguir e classificar diversos tipos de perfume? fazendo a analogia com os animais, que sempre cumprem esse papel nas análises do senso comum, pensei que serve muito bem pra nos prevenir de comida estragada e sujeiras em geral. alguém seria corajoso ou desprevenido o suficiente pra entrar descalço num chiqueiro de porcos? se não sentisse o cheiro, talvez.

até aí beleza, o nariz respirando e nos salvando da morte, da infecção e de outros perigos como puns super fedidos. opa, pera, se eu não sentisse aquele cheiro de pum minha viagem seria bem melhor. aí fui capturada pelo perfume da memória lembrando daquela história de lembrarem de mim pelo cheiro e de eu mesma amando alguns perfumes e detestando outros. e tentei imaginar como desde bebezinha eu fui conhecendo os cheiros. quantos cocôs e de quantas pessoas. cheiro de lençol limpo. cheiro de camiseta suada. manjericão. pescoço. virilha. cheiro de casa.

qual o sentido de a gente lembrar de alguém pelo cheiro, ou ter a memória do cheiro de alguém que não está, ou querer sentir o cheiro de tal pessoa, ou de tal lugar? não é questão de sobrevivência. não é só questão de memória. é querer estar naquele lugar, onde está aquele cheiro. é estar naquele lugar. memória olfativa é transporte.

domingo, 23 de março de 2014

vazio de sábado

numa dessas lacunas que eu entrei: de algo que devia estar lá e não tava, me esmerei no verso manco e nas metáforas cotidianas, pra atravessar aquele espaço, mas o buraco era faminto
minhas pobres metáforas não puderam me levar, apegadas com o calor pesado da carne,

[vejo pela janela um guia turístico que explica em inglês pra uns gringos o que é a consolation's church, lembro que isso acontece todo sábado e penso: que gringos são esses?]

voltando àquela lacuna (não consigo voltar quando lá fora tem um helicóptero e trovões)
voltando à nossa lacuna (enquanto baixo um filme)
voltando
tem uma tal marcha da família
voltando: consegui entender o que não gosto no woody allen, a ênfase nas confusões semânticas da comunicação amorosa, levadas ao paroxismo pela ausência de ação, se a gente pensar que fala é ação, então tem que ser corpo essa fala, entende? quando sai disso eu gosto, quando ele não atua, quando as atrizes arrebentam, etc
mas você gosta muito dos diálogos

voltando à fresta que eu entrei, apesar de pequena na entrada é bem espaçosa e agradável
tem um quê de casa no campo com lareira acesa, flor no cabelo e meia felpudinha
chá de camomila quase morno e dedos enlaçados

[meu download terminou, preciso procurar as legendas]

lembrei o que não gosto em mim também. esse amor pelo vazio, pela negação, pela ausência. o abandono do que é encontro e concordância. essa bandeira frouxa e esburacada da minha liberdade! essas exclamações, essa escrita. esse ridículo.
a busca pela rejeição que cria essas lacunas, buracos negros onde tudo está por existir e a engolir o que poderia ser.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

não se nasce mulher

tornei-me mulher quando amanheceu
joguei o chapéu e a bengala encostada
desci da cama de um pulo
uma gata alongada
(eu percebi de relance)

mulher barata grogue dos sonhos
me vi olhando no espelho
a macheza ainda estava lá
guardei uma mecha de cabelo atrás da orelha e dei um sorriso
pequeno como convém

então a gata se lambeu bem na minha frente
lambida na própria virilha
de um susto mordi a língua que sangrou
sem choro
morno

do sangue bebido virou um feitiço
que virou lágrima de gozo
que virou tudo no oposto
e arrepio de quarta-feira de cinzas
com tempo chuvoso

da boca saiu um riso engasgado
que fugiu pela janela rasgando a cortina
e caiu na boca de outra mulher que acordava naquela hora
do peito brotou um leite inexplicado
que de poça se fez correnteza, arrastando tudo pra fora

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

rosicleide

nas sextas-feiras que a cleide vem limpar nossa casa eu arrumo o quarto antes de abrir a porta. ela é muito organizada e fica visivelmente chateada com a desordem da escrivaninha. vira e mexe muda as coisas um pouco do lugar pra ver se melhora, ou se eu me animo de fazer isso. por ela ser faxineira fico pensando que a mania de limpeza e ordem é efeito colateral da profissão, pode ser.

eu tenho um vício de sorrir. anos de recepcionista acabaram com minha espontaneidade nos encontros, é claro que fiquei mais simpática, meu oi vem com sorrisão queira eu ou não. recepcionista professora atriz mulher professora atriz mulher sorriso sorriso sorriso sorrisão.

a cleide me contou que no sábado ela arruma o guarda-roupa todo e vai tacando água pela casa, limpando tudo. e a mãe fala - ih lá vem ela! e ela bota as mulheres da casa pra ajudar a limpar o quarto dos menores. ela não consegue ver nada sujo e bagunçado, já me dizia a sua irmã rose - ela é muito boa, tem até mania de limpeza. no fim do dia toma uma cervejinha lascada pra relaxar. hoje ela também me contou que quer tatuar outro unicórnio nas costas, que no meio tem os nomes dos pais e da filha e que o estúdio anda lotado esse mês.

o sorriso. às vezes quando abro a porta pra cleide de manhã eu não sorrio. por causa do horário, porque eu tava dormindo, porque ela acordou às 5 da manhã, porque o ônibus é lotado, porque teve enchente, porque não tem razão pra sorrir naquela hora. meu encontro com a cleide é espontâneo (e relâmpago porque eu volto pra cama). sou espontânea com a cleide de manhã quando ela chega. mas essa parte é muito importante: quando abro a porta não sou recepcionista atriz professora e mulher com a cleide.

mais tarde quando ela topa tomar um café comigo eu já estou sorrindo de novo e provavelmente sendo espontânea. às vezes fica difícil saber. ela me conta uns casos, me fala que a rose tá boa, eu conto umas coisas. a gente sorri junto pelo hábito, ou pela graça mesmo das nossas histórias. logo ela já vai levantando e retomando o foco na faxina e eu fico pensando que ela deve ter começado a faxinar muito novinha.

o mistério. a cleide sempre coloca o lençol de cima virado de cabeça pra baixo. ainda não quis perguntar qual a lógica dela porque gosto de pensar nesse mistério. não é falta de atenção, nem dúvida, ela tem certeza que o certo é pra baixo. eu tenho medo de perguntar porquê e acabar com esse suspense. com certeza ela tem uma razão pra colocar do lado errado. eu, apesar de querer muito saber qual é, não quero cortar esse fio de dúvida que me liga a ela desde que ela se vai até eu arrumar o lençol do meu jeito.