sexta-feira, 29 de abril de 2011

pronto, falei

não falamos de nós, falamos de outros imaginários
tratamos de teorias e outras fofocas
falamos do geral
do mundo
o sujo falando do rasgado
o fedido do mal lavado
mas em nossa casa tudo vai bem, obrigada
não tocamos em temas polêmicos, pois gostamos da boa convivência e somos seres civilizados, não é?
nos amamos e respeitamos
amém
boa noite
qualquer coisa liga
beijo amor
tchau, beijo
tchau, tchau

quarta-feira, 27 de abril de 2011

pai nosso

meu deus, apelo ao senhor pois nada mais me resta a fazer já tentei de todas as formas mas não consigo fazer isso sozinha a minha última esperança é encontrar em ti uma solução pra esse meu problema de falar demais e pensar muito pensar e falar em voz alta e ainda querer convencer os interlocutores as vezes apenas irritá-los como estou fazendo neste exato momento incontrolavelmente eu até gostaria de continuar sendo quem eu sou mas sei que canso os pobres que têm que passar seus dias perto de mim e canso até a mim mesma porque mesmo quando eu não falo eu penso e minha vozinha fica enchendo a minha cabeça com mais pensamentos terríveis de catástrofes existenciais e sociais não quero me meter em cumbucas alheias mas afinal pra que serve essa vida que o senhor mesmo me deu se não é pra pensar e agir nesse mundinho de loucos? eu te pergunto

meu deus, apelo ao senhor pois como provei acima sou incontrolável e nem eu mesma estou me aguentando mais e com certeza o senhor não aguenta mais me ver daí de cima me esfolando com os outros seres que considero estúpidos e sei que são seus filhos também me perdoe por tanta pretensão o tempo urge a sanidade me abandona ainda bem que não existem mais hospícios isso penso eu pois meu marido deve achar falta mas voltando ao tema eu preciso que os outros entendam que somos seres iguais inclusive perante deus e as leis e como tais estamos inevitavelmente atados uns aos outros alguns exploram os outros explorados e achamos normal alguém limpar nossa bunda daqui a pouco pra não sujarmos nosso anel de brilhantes, o senhor limpa a própria bunda?

ai meu deus, eu sei que esse não é bem seu departamento mas não sei mais a quem recorrer meus mestres só me deixam mais louca e preciso de um relaxante que só o senhor possui a chave daquela letargia boa de quem se vê com a tranquilidade dos justos e nem pensa nas justiças que estão por aí que são tão diversas quanto os elos de uma corrente ferrada que nos ata uns aos outros inevitavelmente e infernalmente enquanto achamos que somos seres únicos e perfeitos perante o senhor eu não sei mais do que estou falando desculpe por tomar seu tempo espero que possa me ajudar em alguma coisa, o sr marx por acaso está por perto?

terça-feira, 19 de abril de 2011

a flor e a bruta

é uma pétala lilás, desbotada (cuidado: frágil)
e cheiro de noite no mato com uma chuvinha fina, que quase ninguém percebe
não se ouve os passos
não se ouve a voz
quase se ouve a palpitação
do jardim
das formigas que andam pelos seus caminhos
e do seu coração

- coração, vou te dar um jardim só seu
de modo que você aproveite a sombra das arvorezinhas
e borboletas, tenho certeza que vai gostar das borboletas
quer?

(mas tenho medo das borboletas grandes e feias... só as pequeninas delicadinhas que não voam em minha direção)

falou assim mesmo, entre parênteses, e quase se ouviu o ar entrar em seus pulmões

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Quase especial

Numa certa tarde, há quase 30 anos ela nasceu. Nove meses antes, numa certa tarde ela foi concebida. Em qualquer outro momento, outro espermatozóide teria fecundado aquele óvulo. Em qualquer outro momento, ela deixaria de existir. Se tivesse sido em qualquer outro momento, outro ser teria tomado o seu lugar. Por isso, se achou especial. Não apenas se achou, como todos acharam. Era praticamente unânime, ela era única, especial.
Sendo assim tão rara, sentiu-se estranha nos primeiros anos de escola. Buscou desde o início entender em quê ela era diferente e especial ali. Era boa aluna, a melhor da sua sala. Era obediente, sempre fora e essa era uma das suas qualidades mais especiais. Era agradável com todos que se aproximavam e tímida.
No meio do caminho na escola, entre o 1º e 12º ano da sua formação básica, coisas estranhas aconteceram. De repente, não se lembrava bem quando, não se sentia mais especial. De repente o menino mais bonito da sala não gostava mais dela, não escrevia cartinhas, nem pensava no futuro dos dois. Não bastava mais ser especial, era preciso tirar a calcinha.
Foi mais ou menos por aí que a escola acabou. Não sabia mais se era especial. Os meninos trocavam-na pelas oferecidas. Não tinha compromissos, tarefas a cumprir, notas altas a exibir. Refugiou-se em casa, onde nunca deixou de ser especial e única. Sua mãe contava a história do seu nascimento, da concepção, dos espermatozóides, do óvulo e ela lembrava que era única, especial.
Finalmente achou que devia dar o que os rapazes esperavam e deu. Achou que era óbvio seguir os estudos e prestou vestibular. Achou que a faculdade de arte era o melhor lugar para mostrar seus atributos. Voltaria a ser especial, sem dúvida. A faculdade era mais difícil do que esperava, mas ainda era possível se destacar aqui e ali. Havia muitas opções de rapazes para dar, era bonita e encontrou seu lugar ao sol.Apesar de estar tudo bem, começou a perceber que o mundo era maior do que imaginava. A todo momento tinha que tentar reencontrar um lugar para ser especial e única. Na faculdade as coisas foram ficando difíceis, na verdade nem todos gostavam dela. Na verdade, eram artistas esnobes, pessoas que se achavam superiores. Essas pessoas riam dela, deviam dizer como ela era bonita, inteligente, talentosa, mas riam.
Percebeu que o mundo era muito maior do que imaginava e quis encontrar um outro lugar para si. Percebeu que ali não seria feliz o suficiente, havia muitos artistas medíocres como ela. Melhor mudar de profissão.
Mudou, porque era fácil para ela escolher. Ela havia se dedicado o suficiente, era especial o suficiente para escolher uma profissão. Resolveu que economia era uma ótima opção, podia ganhar dinheiro mais facilmente com a economia. Se fosse artista, seria pobre. Pobre não é particularmente especial, isso ela já sabia. Pobre só é especial se conseguir ficar rico, isso ela sempre soube. Economia, então.
Foi para a economia e o resto é história. A economia não era assim grande coisa, ela não gostava, mas na faculdade conheceu um cara. O cara. Ele a fazia se sentir especial. Só pensava nela, ligava pra ela 15 vezes por dia só para dizer "te amo". Nunca tinha se sentido tão especial, nem mesmo em casa. Nem mesmo a sua família lhe dedicava tanto tempo quanto Ele. Ele comprou uma aliança que foi sua primeira jóia. Daí até o casamento e os dois filhos foi um pulo. Um pulo com toda a responsabilidade, toda a seriedade que exigia a formação de uma nova família. Todos os preparativos adequados para a fecundação de um novo óvulo, desta vez seu. Todo o ritual necessário para a ejaculação dos milhares de espermatozóides especiais.
E foi assim que aquela menina tão única quanto todas as outras pôde ser tão feliz quanto todas as outras meninas como ela, especiais.