segunda-feira, 4 de abril de 2011

Quase especial

Numa certa tarde, há quase 30 anos ela nasceu. Nove meses antes, numa certa tarde ela foi concebida. Em qualquer outro momento, outro espermatozóide teria fecundado aquele óvulo. Em qualquer outro momento, ela deixaria de existir. Se tivesse sido em qualquer outro momento, outro ser teria tomado o seu lugar. Por isso, se achou especial. Não apenas se achou, como todos acharam. Era praticamente unânime, ela era única, especial.
Sendo assim tão rara, sentiu-se estranha nos primeiros anos de escola. Buscou desde o início entender em quê ela era diferente e especial ali. Era boa aluna, a melhor da sua sala. Era obediente, sempre fora e essa era uma das suas qualidades mais especiais. Era agradável com todos que se aproximavam e tímida.
No meio do caminho na escola, entre o 1º e 12º ano da sua formação básica, coisas estranhas aconteceram. De repente, não se lembrava bem quando, não se sentia mais especial. De repente o menino mais bonito da sala não gostava mais dela, não escrevia cartinhas, nem pensava no futuro dos dois. Não bastava mais ser especial, era preciso tirar a calcinha.
Foi mais ou menos por aí que a escola acabou. Não sabia mais se era especial. Os meninos trocavam-na pelas oferecidas. Não tinha compromissos, tarefas a cumprir, notas altas a exibir. Refugiou-se em casa, onde nunca deixou de ser especial e única. Sua mãe contava a história do seu nascimento, da concepção, dos espermatozóides, do óvulo e ela lembrava que era única, especial.
Finalmente achou que devia dar o que os rapazes esperavam e deu. Achou que era óbvio seguir os estudos e prestou vestibular. Achou que a faculdade de arte era o melhor lugar para mostrar seus atributos. Voltaria a ser especial, sem dúvida. A faculdade era mais difícil do que esperava, mas ainda era possível se destacar aqui e ali. Havia muitas opções de rapazes para dar, era bonita e encontrou seu lugar ao sol.Apesar de estar tudo bem, começou a perceber que o mundo era maior do que imaginava. A todo momento tinha que tentar reencontrar um lugar para ser especial e única. Na faculdade as coisas foram ficando difíceis, na verdade nem todos gostavam dela. Na verdade, eram artistas esnobes, pessoas que se achavam superiores. Essas pessoas riam dela, deviam dizer como ela era bonita, inteligente, talentosa, mas riam.
Percebeu que o mundo era muito maior do que imaginava e quis encontrar um outro lugar para si. Percebeu que ali não seria feliz o suficiente, havia muitos artistas medíocres como ela. Melhor mudar de profissão.
Mudou, porque era fácil para ela escolher. Ela havia se dedicado o suficiente, era especial o suficiente para escolher uma profissão. Resolveu que economia era uma ótima opção, podia ganhar dinheiro mais facilmente com a economia. Se fosse artista, seria pobre. Pobre não é particularmente especial, isso ela já sabia. Pobre só é especial se conseguir ficar rico, isso ela sempre soube. Economia, então.
Foi para a economia e o resto é história. A economia não era assim grande coisa, ela não gostava, mas na faculdade conheceu um cara. O cara. Ele a fazia se sentir especial. Só pensava nela, ligava pra ela 15 vezes por dia só para dizer "te amo". Nunca tinha se sentido tão especial, nem mesmo em casa. Nem mesmo a sua família lhe dedicava tanto tempo quanto Ele. Ele comprou uma aliança que foi sua primeira jóia. Daí até o casamento e os dois filhos foi um pulo. Um pulo com toda a responsabilidade, toda a seriedade que exigia a formação de uma nova família. Todos os preparativos adequados para a fecundação de um novo óvulo, desta vez seu. Todo o ritual necessário para a ejaculação dos milhares de espermatozóides especiais.
E foi assim que aquela menina tão única quanto todas as outras pôde ser tão feliz quanto todas as outras meninas como ela, especiais.

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